Bastiat e o furacão
Assistia eu, no final da noite de domingo, ao bom programa Manhattan Connection quando, horas tantas, um dos participantes da mesa redonda, o economista Ricardo Amorim, elaborou um comentário, digamos, no mínimo precipitado. Disse ele, não exatamente com essas palavras, que: a curto prazo, os efeitos do Furacão Katrina na economia norte americana serão positivos, devido aos investimentos ligados à reconstrução das localidades afetadas.
De acordo com o raciocínio do senhor Amorim, pensei cá com os meus botões, caso a América tivesse furacões diários, durante o ano inteiro, certamente seria uma nação muito mais próspera, pois conviveria constantemente com os tais "efeitos econômicos positivos" dessa intempérie da natureza.
Imediatamente, lembrei-me do incomparável Frédéric Bastiat, parlamentar e economista francês do Século XIX, que deixou para humanidade uma obra de grande sabedoria, enorme perspicácia e finíssima ironia.
Segundo esse brilhante ser humano, "na esfera econômica, um ato, um hábito, uma instituição, uma lei não geram somente um efeito, mas uma série de efeitos. Dentre esses, só o primeiro é imediato. Manifesta-se simultaneamente com a sua causa. É visível. Os outros só aparecem depois e não são visíveis. Podemos nos dar por felizes se conseguirmos prevê-los." E arremata de forma incisiva: "Entre um bom e um mau economista existe uma diferença: um se detém no efeito que se vê; o outro leva em conta tanto o efeito que se vê quanto aqueles que se devem prever."
No caso do sr. Amorim, o que ele vê são os empregos criados pela reconstrução, os investimentos, o desenvolvimento de alguns setores ligados à construção civil, etc. O que ele não vê é que todo o dinheiro gasto na reconstrução deixou de ser aplicado em outras áreas, em investimentos que ficaram prejudicados em função da emergência decorrente da devastação do Katrina.
Sobre esse tema específico, Bastiat nos conta a pequena história da vidraça quebrada, que demonstra, de forma cabal e inequívoca, o enorme erro de avaliação do sr. Amorim. Vamos, então, a ela:
"Todos os que testemunharam, sensibilizados, o momentâneo ataque de raiva do Bom Burguês Jacques Bonhomme, no dia em que teve uma vidraça quebrada por seu terrível filho, foram unânimes em confortá-lo com palavras do tipo: “há males que vem para bem. São acidentes desse tipo que ajudam a indústria a progredir. É preciso que todos possam ganhar a vida. O que seria dos vidraceiros, se os vidros nunca se quebrassem?”
Supondo-se que seja necessário gastar seis francos para reparar os danos feitos, pode-se dizer, com toda justeza, e estou de acordo com isso, que o incidente faz chegar seis francos à indústria de vidros, ocasionando o seu desenvolvimento na proporção de seis francos. É o que se vê.
Mas se, por dedução, chegarmos à conclusão de que é bom que se quebrem vidraças, de que isso faz o dinheiro circular, de que daí resulta um efeito propulsor do desenvolvimento da indústria em geral, então eu serei obrigado a exclamar: Alto lá! Essa teoria pára naquilo que se vê, mas não leva em consideração o que não se vê.
Não se vê que, se o nosso burguês gastou seis francos numa determinada coisa, não vai poder gastá-la noutra! Não se vê que, se ele não tivesse nenhuma vidraça para substituir, ele teria comprado, por exemplo, um sapato novo, ou posto um livro a mais na sua biblioteca. Enfim, ele teria aplicado seus seis francos em alguma outra coisa, que, agora, não poderá mais comprar. Façamos, pois, as contas da indústria em geral: tendo sido quebrada a vidraça, a fabricação de vidros foi estimulada em seis francos; é o que se vê. Se a vidraça não tivesse sido quebrada, a fabricação de sapatos (ou de qualquer outra coisa) teria sido estimulada na proporção de seis francos; é o que não se vê. Façamos agora as contas de Jacques Bonhomme: Na primeira hipótese, a da vidraça quebrada, ele gasta seis francos e tem, nada mais nada menos que antes: o prazer de possuir uma vidraça. Na segunda hipótese, aquela na qual o incidente não ocorreu, ele teria gastado seis francos em sapatos e teria tido ao mesmo tempo o prazer de possuir um par de sapatos e também uma vidraça.
Ora, como Jacques Bonhomme faz parte da sociedade, deve-se concluir que, considerada no seu conjunto, e fazendo-se o balanço de seus trabalhos e de seus prazeres, a sociedade perdeu o valor relativo à vidraça quebrada.
Daí, generalizando-se, chega-se a esta conclusão inesperada: ”A sociedade perde o valor dos objetos inutilmente destruídos” – e se chega também a este aforismo que vai arrepiar os cabelos dos protecionistas: “Quebrar, estragar, dissipar não é estimular o trabalho nacional”, ou mais sucintamente: ”Destruição não é lucro”.
É preciso que o leitor aprenda a constatar que não há somente dois, mas três personagens no pequeno drama que acabei de apresentar. Um deles, Jacques Bonhomme, representa o consumidor reduzido a ter, por causa da destruição, um só prazer em vez de dois. O outro, sob a figura do vidraceiro, nos mostra o produtor para quem o incidente estimula a indústria. O terceiro é o sapateiro (ou outro industrial qualquer) cujo trabalho é desestimulado também pelas mesmas razões.
É esse terceiro personagem que sempre se mantém na penumbra e que, personificando aquilo que não se vê, é peça fundamental do problema. É ele que nos faz compreender o quanto é absurdo afirmar-se que existe lucro na destruição. É ele que logo nos ensinará que não é menos absurdo procurar-se lucro numa restrição, já que esta é também, no final das contas, uma destruição parcial."
O autor é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
Publicado no MSM
10 comentários:
Além da vdiraça quebrada, "A Lei" do Bastiat é também sensacional. Parece que foi escrito ontem. E pro Brasil. Ótimo artigo. Abração, Lucas!
Caro Lucas:
Vergonha: até mesmo o editorial da revista 'The Economist' caiu no conto da vidraça quebrada ao analisar o furacão Katrina. Ao menos o Ricardo Amorim enfatizou o 'a curto prazo', aí eu até concordo com ele, embora não seja consolo nenhum: a conta vai ser paga depois, seja com corte de gastos no futuro ou com inflação.
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