31 de out. de 2004

Nota: O texto abaixo é de autoria do professor argentino Gabriel Zanotti, que tardiamente descobri seus excelentes trabalhos sobre a escola austríaca de economia e sua epistemologia. Neste artigo Zanotti (coloquei o link para seu site acima) expõem a conjuntura da globalização mundial evidenciando o caráter intervencionista que dirigiu e permeou o processo cada vez mais veloz da interdependencia das nações, a globalização. O artigo escrito em 2002, no auge da crise internacional pós 11 de setembro, além de relatar a gênese da globalização mundial estimulada por organizações internacionais (ONU, FMI e OMC), aborda a contribuição teórica da sempre marginalizada Escola Austríaca de Economia, mais precisamente nos trabalhos de Mises e Hayek, onde os dois estudiosos sempre chamaram a atenção para a periculosidade de uma "globalização" ditada por governos ou mesmo órgãos mundiais. Além disso Zanotti nos mostra o modo como esses economistas vislumbravam uma interrelação das nações através do livre comércio, que como nos mostra com seu brilhantismo costumeiro, nada tem a ver com o atual processo titubeante da globalização, muito mais caractrerizada pelo intervencionismo de Estado do que do simples, salutar, mas sempre difamado pelas hostes de energúmeros demagogos (leia-se: intelectuais), livre mercado.

GLOBALIZAÇÃO E A ESCOLA AUSTRÍACA

Por Gabriel J. Zanotti

Numa época na qual o capitalismo parece enfrentar graves problemas; numa época onde a “globalização”, considerado efeito do capitalismo mundial, parece haver conduzido a grandes desigualdades, injustiças e problemas culturais, toda defesa do capitalismo parece ser uma mera hipótese auxiliar elaborada com um recurso dialético frente a um fracasso que parece inegável. Frente a essa interpretação, o objetivo deste artigo é mostrar que:

1. O atual processo de globalização não é mais que a globalização do intervencionismo de Estado em todas as áreas.

2. Que a crítica ao intervencionismo faz parte do eixo central da Escola Austríaca de Economia (Mises e Hayek).

3. Que a situação atual não é mais que uma dramática confirmação dessa crítica.

4. E que, portanto, longe de encontrarmos em uma crise sem novos paradigmas interpretativos, a Escola Austríaca nos oferece uma explicação e uma saída para a situação atual.

Comecemos pelo segundo ponto. Vejamos a parte sexta do tratado de economia de Ludwig von Mises (1). Como vimos, estamos falando de uma obra central e não marginal entre seus trabalhos. E mais, estamos falando de uma obra sem a qual não haveria o renascimento da Escola Austríaca de Economia a partir dos anos 70.
Antes de tudo, Mises estabelece sua tese geral: toda intervenção do Estado gera exatamente os efeitos que com ela queriam se evitar e pior, com a intervenção eles ainda são agravados.

Começa com o intervencionismo fiscal. Todo imposto de renda ou sobre o capital é criticado como algo que, sinceramente, diminui a taxa de capital existente e, com isso, diminui os salários reais prejudicando os setores de menor renda.

Segue com o que denomina “medidas restritivas a produção”. Toda intervenção do Estado fixando tarifas aduaneiras é rechaçada com algo que, longe de aumentar a indústria e o emprego, os reduzirá notavelmente, além de criar um sistema econômico baseado no privilégio como sistema.

Segue com a intervenção sobre os preços. Além de agravar os problemas inflacionários, o especial é que Mises adverte neste ponto sobre a dramática conseqüência de fixar o salário acima de sua produtividade: o desemprego. Começa aí sua crítica à atividade sindical do tipo fascista.

O capítulo que segue é essencial para a Escola Austríaca e para Mises em particular. Trata-se do intervencionismo monetário e creditício. O monopólio estatal sobre a moeda e o controle da oferta de moeda implica necessariamente em inflação. A expansão do crédito implica em um período artificial de expansão da produção seguida de seu inevitável efeito: a recessão. O capítulo termina com outra crítica sobre o controle comercial e sobre o controle estatal do comércio internacional. Neste último aspecto cabe recordar que ao falar da política monetária internacional, o FMI recebe uma importante crítica, e não marginal: "... O Fundo Monetário Internacional de modo algum tem conseguido aqueles objetivos que perseguiam seus sustentadores”. Mises escreveu isso na década de 40.

Segue outro capítulo criticando toda a política confiscatória, reiterando seu óbvio efeito: descapitalização, maior pobreza e subdesenvolvimento.

Conclui, finalmente, com uma contundente crítica ao intervencionismo sindical, essa união fascista entre sindicatos e o Estado que culmina no mais amplo e devastador desemprego, à qual segue-se uma crítica sobre a mentalidade belicista como desculpa para a intervenção do Estado.

Este último tema é o eixo central de sua obra mais importante em filosofia política, Liberalismo (2), de 1927. O comércio internacional é entendido aí como a chave para o bem-estar dos povos e o único desestímulo real para a guerra, ao militarismo, ao nacionalismo e ao imperialismo. Atualmente, poucos recordam a ênfase que Mises usou para criticar tudo isso. Naquele momento Mises critica a política exterior belicista e fechada ao livre comércio entre as nações européias, predizendo outra terrível batalha mundial. O livre comércio não tem nada a ver com acordos internacionais entre os governos, e a então “Sociedade das Nações” recebe uma importante crítica que se aplica hoje à ONU: inúteis serão todos os acordos sem a existência de um autêntico livre comércio internacional.

Voltamos a dizer que não estamos falando de cartas que Mises enviou ao seu avô um dia antes de morrer. Estamos falando de textos centrais, de textos imprescindíveis em qualquer análise de seu pensamento. Agora bem, que estes textos continuem sendo absolutamente desconhecidos pelo paradigma econômico dominante, é algo cuja reflexão deixaremos para o fim.

Hayek é um caso parecido. Em 1935 critica as hipóteses dos modelos de concorrência perfeita e sustenta que o mercado implica outros pressupostos: indivíduos com conhecimentos dispersos e uma capacidade de aprendizagem que só é orientada para as necessidades de demanda, no caso em que os pressupostos jurídicos do mercado incluam a liberdade de entrada no sistema. Este pressuposto, contrário a todas as intervenções estatais no comércio internacional, se mantém ao longo de toda sua obra mais conhecida e não é casualidade que, portanto, em 1974 propõe a eliminação do curso forçado (isto é, a eliminação de uma só moeda obrigatória) como eixo central de sua proposta monetária (3). Exatamente o contrário do que depois faz a União Monetária.

Sigamos então com o ponto um de nossa análise. O que tem que ver a chamada “globalização” com o que Mises e Hayek propuseram para a política e para a economia internacional? Não só muito pouco, mas sinceramente todo o contrário. Em detalhe: imposto de renda progressiva ou não; indústrias “privadas” protegidas por tarifas alfandegárias e todo tipo de monopólios legais e políticas monetárias, creditícias e impositivas; modelos sindicais corporativos com a crença generalizada, de orientação marxista, de que sem salários mínimos há exploração dos trabalhadores; controle estatal sobre a moeda e o crédito... Com todos os efeitos estudados e previstos por Mises e Hayek: menor quantidade de capital por habitante; inflação; recessão; desemprego; crises creditícias e bancárias; ociosidade... Nos faz lembrar alguma coisa? Tendo-se em conta que as críticas de Mises e Hayek estão desenvolvidas num contexto europeu e norte americano...

Em geral: bancos centrais; controles e privilégios ao setor privado; alta pressão impositiva; pactos inter-governamentais (União Européia; Nafta; Mercosul), tarifas alfandegárias; controles migratórios... essa é a atual chamada globalização. Sinceramente, a globalização do intervencionismo.

Vamos então aos pontos três e quatro. A crise atual da globalização como sistema não é mais que uma dramática afirmação das advertências de Mises e Hayek. Onde a mentalidade neomarxista e neofascista vê demasiado livre mercado, Mises e Hayek veriam muito pouco, e advertiram toda a sua vida, e não em notas de roda-pé, as terríveis crises internacionais que disso se seguiriam. Não ficamos, portanto, sem explicações. Eis a explicação de Fidel Castro, renovado líder intelectual a quem todos começaram a repetir depois de 11 de Setembro, porque, aparentemente, o capitalismo dos Estados Unidos, com suas conseqüências de pobreza e subdesenvolvimento sobre o terceiro mundo e no oriente médio, é produto do cultivo de mentalidades extremistas. E eis a explicação de Mises e de seu discípulo Hayek. Definitivamente, Estados Unidos e Europa estão longe de terem entendido o que seja o livre mercado. Desta maneira simples.

Se é simples, por que que se desconhece? Porque os paradigmas alternativos podem ser simples, mas os paradigmas dominantes têm a “piel gruesa”(4). O pior inimigo do capitalismo liberal de Mises e Hayek não é Castro. Em nível intelectual, seus piores inimigos são os milhares e milhares de graduados em economia de quase todas as universidades do mundo, formados em manuais de economia neokeynesianos que explicam muito bem os instrumentos de “política monetária, creditícia e impositiva”, essas medidas “macro” que devem estar a cargo dos governos “para que o capitalismo funcione”. Sob essas crenças (exatamente tudo aquilo que Mises criticou como intervencionismo) constituem-se ministérios, secretarias e organismos internacionais, assessorando a ONU, o Banco Mundial, o FMI, os funcionários da União Européia, do Nafta e outras tantas instituições que são, sob o paradigma explicativo de Mises, o auge da mentalidade intervencionista. Mentalidade que forma parte da engenharia social que nos governa, que forma parte, por sua vez, de um positivismo cultural, de uma racionalidade instrumental que para cúmulo é colocada pela esquerda culta como a idéia central do capitalismo...

As aplicações em nosso país são óbvias e dramáticas. A esse respeito, apenas uma coisa: o nosso não é só um problema de corrupção, mas de uma mentalidade que pode dominar os nossos mais honestos funcionários, e o sistema que rege a organização dos nossos poderes legislativos nacionais e dos partidos políticos. Sobre esses temas, sobre as crises das democracias constitucionais e dos partidos políticos, cujos poderes têm-se expandido, Mises e Hayek também advertiram e, da mesma forma, em partes centrais de seus escritos. Portanto, a Argentina pode amanhã mesmo renovar todas as suas autoridades, mas com isso o problema não estará resolvido.

Mas parte dele estará resolvido quando começarmos a estudar seriamente estes autores. Pode soar estranho que diante de tudo isso eu proponha o estudo, mas, assentado em Husserl, parafraseio uma famosa expressão. O que queira transformar o mundo, o destruirá; o que queira contemplá-lo, o construirá.

Fonte: atlas.org.arg

(1) Mises, Ludwig von. Ação humana: um tratado de economia. 2 .ed. – Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995. 890 p. (N.T.)

(2) Traduzida e publicada pelo Instituto Liberal (N.T)

(3) Para ver essa proposta completa, ver seu livro “Desestatização do Dinheiro” (Instituto Liberal). (N.T)

(4) "Piel gruesa" é uma expressão utilizada pelo epistemólogo Imre Lakatos, para mostrar que os paradigmas são resistentes a mudanças, com a analogia de “piel gruesa”, isto é, uma cobertura teórica resistente às irregularidades. (N.T.)

Gabriel J. Zanotti é Doutor em Filosofia e professor de Filosofia. Autor de vários livros, entre eles, “Epistemologia da Economia” e “Nueva Introdución a la Escuela Austriaca de Economía”.


Tradução: Lucas Mendes.

15 de out. de 2004

Nota: Reproduzo abaixo artigo de Santos Mercado. O autor mexicano é economista e recentemente ficou conhecido do público brasileiro graças a publicação de seus artigos no site Mídia Sem Máscara. A tradução de seus artigos para o português é feita pelo meu amigo Juan Jesús Morales. Neste artigo, Santos Mercado aborda a causa do atraso mexicano sempre evidenciando as amarras governamentais da mentalidade estatista que predomina nos políticos daquele país em detrimento dos valores da liberdade que, assim como no Brasil e na América Latina como um todo, estão definitivamente ausentes do cardápio teórico-ideológico.


Proibido pedir permissão
por Santos Mercado

Uma parte do setor governamental (muito reduzida, por sinal) está realmente preocupada em construir uma economia aberta, globalizada, moderna e competitiva, mas não encontra as estratégias adequadas, caminha como que em terras pantanosas e na escuridão. A outra parte governamental, a esquerdista (muito ampla), luta com todas as armas possíveis para evitar que as mudanças sejam feitas no sentido capitalista ou liberal. Com efeito, as duas correntes inimigas encontram-se dentro do governo e numa luta sem quartel não é fácil saber quem será o vencedor.

A esquerda mexicana, quer dizer, os socialistas, estão eufóricos pelos recentes triunfos de líderes pró-comunistas na Bolívia, Equador, Argentina e Brasil que encabeçados por Cuba já formam uma grande força anticapitalista. Acrescentemos que no México o Partido da Revolução Democratica (PRD) bisneto do velho Partido Comunista Mexicano (PCM), está ganhando mais terreno em diversas cidades, incluindo o Distrito Federal. Não poucos esquerdistas já esfregam as mãos pensando que ganharão as eleições de 2006, seja com López Obrador, Cuauhtemoc Cárdenas, Rosário Robles ou com Ricardo Monreal.

Por outro lado, a débil ala liberal do governo encontra-se em franco desconcerto, como perdidos na beira do mar. Pouco acostumados a governar e com um pensamento que não termina por definir-se, parecem destinados a perder todas as batalhas. E é de se esperar. Carecem de líderes ideológicos que tenham clareza a respeito do novo projeto de nação; carecem de líderes políticos dispostos a se enfrentarem contra o mesmo inferno para defender o projeto liberal. Rogam, negociam e cedem ante os dinossauros esquerdistas. São sinais pouco promissores, que nos deixam escassas esperanças de que o México participe da grande festa das economias potentes. Com a esquerda estamos perdidos e os aprendizes de liberais no governo não apreendem rápido. Talvez, fosse necessário refletir para compreender que os assuntos importantes, os que se referem à economia de um país nunca devem estar nas mãos do Estado e menos se for esquerdista.

Temos que dominar a teoria e apreender que, para construir uma economia capaz de dar bem-estar a todos os cidadãos é necessário impor o espírito básico do capitalismo que diz “se você quer fundar uma empresa, não peça licença, faça!”. Isto, naturalmente, nunca o promoverão os comunistas, pois eles são amantes do controle estatal.

Não estou me referindo a que os prefeitos não peçam permissão para determinarem eles mesmos os salários, pois isso é roubo; não estou me referindo a que os deputados não peçam licença para nos impor leis absurdas, pois isso gera corrupção; nem estou me referindo a que o policial não peça permissão para extorquir o transportador de fruta.

A lei de “proibido pedir permissão” é para os cidadãos, para o homem comum, o da rua, não para os empregados do governo. A única restrição a esta lei é que quem a desfruta não cause dano a terceiros. Quer dizer que, se você quer produzir laranjas, foguetes ou computadores, deve fazê-lo sem pedir licença ao governo; se você encontrar petróleo, gás ou diamantes no seu terreno, você deve ter o direito de fazer com eles o que quiser, sem que seja necessária uma autorização governamental. Se você quiser comprar uma carreta cheia de melancias para vender fatias nas ruas da Cidade do México, ninguém o pode impedir.

Qualquer atividade de produção ou comercialização deve ser “sem pedir permissão”, sem que tenha que fazer 800 trâmites (nem sequer um), nem repartir dinheiro aos funcionários para angariar uma assinatura. É claro, não estou dizendo que se você quiser montar um negócio de laranjas, o possa fazer no meio da rua. Ali não! Porque estaria prejudicando os interesses do motorista ou do pedestre. Nem poderá pegar um terreno improdutivo e montar uma fábrica, pois terá que falar com o dono para você poder comprá-lo ou alugá-lo. Quer dizer, as atividades de produção e comércio devem ser resolvidas entre particulares, sem intervenção governamental.
Talvez, para os ouvidos daqueles que estão acostumados ao controle governamental esta idéia pareça descomunal. Porém, deixe-me dizer que foi aplicada nos Estados Unidos de 1776 à 1909 e isso permitiu que se transformasse numa grande potência econômica. Os cidadãos sentiram-se com a completa liberdade de comprar, semear, produzir, transformar, vender, exportar, etc. Essa política de total liberdade ao homem comum desencadeou a energia criadora de cada cidadão. Foi aplicada em Hong Kong e nasceu um grande empório industrial; com o desaparecimento da União Soviética foi aplicada e nasceram os que agora são grandes comerciantes e produtores russos. Na China já se aplica, desde que Milton Friedman recomendou algo semelhante (1982) e está crescendo a taxas que parecem inacreditáveis.

Isso não quer dizer que desapareça o Estado. Aliás, é preciso de um Estado (liberal) cruelmente forte para que esteja disposto a defender este sistema de liberdades econômicas contra os depredadores, chame-os comunistas, socialistas, esquerdistas, direitistas, fascistas, populistas ou nazistas. Porém, há que reconhecer que criar um estado liberal que substitua o Estado socialista que padece o México é uma tarefa e tanto. Nosso povo ainda terá que suportar por um bom tempo a velha classe governamental que se acostumou a viver com base em proibições e despojos ao cidadão. Essa velha burocracia política que gosta de fabricar toneladas de leis e ter assim pretextos fáceis para controlar e extorquir o homem produtivo.

Por outro lado, os cidadãos precisam aprender o valor da liberdade econômica. Aprender a desfrutar, aplicar, reclamar e defender esta liberdade. É digno de reconhecer que o México conquistou um pouco de liberdade desde a década dos oitenta, mas é triste que não a soubemos utilizar corretamente. Aliás, há grupos que a têm usado em franco prejuízo contra o desenvolvimento do país, já se opondo a novos aeroportos, à privatização da industria elétrica, etc.

Se a isto acrescentarmos a atitude do governo comunista da Cidade do México batendo nos comerciantes informais, fechando vendedoras de gás, empresas, fundando escolas para doutrinar no marxismo, etc., quer dizer que em lugar de fazer do México uma terra de oportunidades para que as pessoas saiam da pobreza, há toda uma intenção para fazer de nosso país uma nação de miséria perdurável.

Definitivamente, se verdadeiramente sonhamos sair da pobreza, se queremos que no México todo mundo tenha emprego, todo mundo use seu talento e contribua à formação de riqueza em prol de toda a sociedade, temos que jogar no lixo todas as normas, leis e restrições que impedem às pessoas fazerem negócios. Temos que aplicar tenazmente o princípio de “proibido pedir licença”. Faça você o que você quiser, contanto que não prejudique a ninguém.

Tradução: Juan Jesús Morales