9 de jun. de 2008

A integridade perturba

O Rio Grande do Sul está fervendo com a divulgação da gravação que o vice-governador, Paulo Afonso Feijó, fez de sua conversa com o ex-secretário da casa civil do Estado, César Busatto. Ali, no testemunho e conivência de Busatto, revela-se como funciona na essência a esfera da política, àquela que o Estado abriga e, por isto, foi tão bem definido pelo economista francês Frédéric Bastiat ainda no século XIX, quando memoravelmente sentenciou: “o Estado é a ficção através da qual TODO mundo se esforça para viver às custas de TODO mundo”. Feijó, num ato de heroísmo invejável e respeito a seus princípios historicamente defendidos, abriu a cortina que revela esta máxima de Bastiat. O povo gaúcho (e quiçá brasileiro) precisa se dar conta disso urgentemente. Precisamos de mais Feijós! Homem íntegro e não suscetível a podridão, que regra geral, é a essência da política. Por isto Feijó deverá, no fim das contas, ser execrado ou no mínimo esquecido, pois não creio que na política a virtude vencerá. Para a tristeza (nem sempre percebida) do povo. De toda forma, vida longa à Feijó!

5 de jun. de 2008

Retomando Aristóteles...

Ética e felicidade; haveria dois conceitos mais distantes? Uma coisa é aquilo que devemos fazer: as regras e proibições às quais estamos submetidos. Outra, bem diferente, é aquilo que nos dá prazer e alegria, que nos torna felizes. Se há alguma relação entre as duas, é a inversa: a felicidade está exatamente em fazer aquilo que não deveríamos! Alguns objetariam: “Não é bem assim! Claro que a ética tem alguma importância para a felicidade. Se saíssemos matando todo mundo, não daria para ser feliz. Uma vez cumprida a ética, aí sim todo mundo pode procurar sua felicidade”.

Como estamos distantes da concepção aristotélica de ética! E como ela tem nos feito falta! Ética se tornou algum tipo de abstração, regras a serem seguidas, quando na verdade ela era nada mais do que o próprio estudo de como o homem deve se comportar para ser verdadeiramente feliz. E aqui deparamo-nos com a primeira “novidade”: existe uma verdadeira felicidade humana, universal e objetiva; felicidade não é qualquer coisa que a pessoa quiser.

“Ah, mas o que eu gosto é de passar a vida comendo pizza na cama! Você não pode me julgar!” – ora, somos homens! Há algo que nos distingue dos animais: a razão. Essa vida seria apropriada a um animal não-racional. Nosso amigo comedor de pizza talvez seja um bom porco (na verdade, nem isso), mas como homem ele é muito ruim, pois em sua vida não há espaço nenhum para aquilo que faz dele humano. Em geral é a própria pessoa que acaba descobrindo a roubada na qual esteve metida; pensou que seria feliz, mas encontrou apenas o tédio e o desgosto; precisa de cada vez mais pizza para obter um deleite cada vez menor. Mas mesmo que não descubra, nós, que olhamos de fora, vemos claramente que ela se contenta com bens muito menores do que sua natureza racional é capaz.

Existem coisas que tornam o homem feliz, e coisas que o afastam da felicidade à qual ele pode almejar. Isso não quer dizer que todas as pessoas tenham que ter a mesma vida. Não digo que “a verdadeira felicidade só é encontrada pelos bacharéis em economia e filosofia que procuram entrar para a vida acadêmica” - nada disso! Temos todos a mesma natureza humana, mas há muitas diferenças individuais que garantem uma grande variedade de vidas felizes. Mesmo assim, há coisas que valem para todos: é melhor amigos do que solidão; conhecimento do que ignorância; é melhor ser corajoso do que covarde; expedito do que preguiçoso; generoso do que invejoso.

O problema é que o ser humano não é uma alma que controla um corpo da mesma forma que um motorista guia um carro. Se o motorista quer fazer a curva à direita, basta virar o volante que o carro vai. Conosco é bem diferente. Sei que levantar no horário é bom para mim; quero levantar no horário; e, ainda assim, me delongo meia-hora a mais no aconchego da cama.

Mesmo reconhecendo o que seria o bom para sua vida, o homem tem dificuldade em persegui-lo. É preciso uma longa educação das próprias disposições internas (dos sentimentos, das paixões, das maneiras de pensar) para que ele viva de acordo com o que sabe ser o bem. A disposição de se comportar de forma boa é o que chamamos de virtude. Já a disposição má, chamamos de vício.

É muito difícil cultivar uma virtude; apenas com muitos pequenos atos de coragem repetidos ao longo de muito tempo é que nos tornamos corajosos. Já o vício cresce facilmente; basta não fazer nada que, espontaneamente, desenvolver-se-ão todos aqueles detestáveis traços de caráter que tanto odiamos nos outros, mas que relutamos em combater em nós mesmos. A coragem é um estreito meio-termo entre a covardia e a temeridade; a liberalidade (a virtude de se gastar bem o dinheiro), entre a mesquinhez e a prodigalidade. A virtude é a tendência a agir de medida correta, sem cair nem na deficiência e nem no excesso, que constituem os vícios.

Mas o que é a medida correta? Não quero ser nem glutão e nem passar fome; como saber se, na situação atual, a medida correta de comida é uma ou duas conchas de arroz? Assim como todas as questões importantes da vida, não é possível resolver o problema ético com regras ou fórmulas aplicáveis a todos os casos. Precisamos da virtude da prudência, que nos leva a avaliar as circunstâncias presentes e articulá-las com os princípios morais que nos guiam, de forma a descobrir como agir em cada caso particular. E como adquirir a prudência? Apenas com muita experiência e observação dos exemplos daqueles que vivem bem.

Esse jeito de encarar a ética muda tudo. Não estamos mais falando de leis distantes de nós, mas sim do tipo de atitude que teremos com relação a nossa própria vida, de forma a atingir nossa finalidade de animais racionais: a felicidade. Por um lado, nos livramos do peso opressivo de tantas regras que não nos ajudam a melhorar como seres humanos. Por outro, é uma concepção mais exigente: não basta seguir as regras. Você não mata, não rouba e pára no sinal vermelho; muito bem! Mas, até aí, a ética mal começou. Tudo o que fazemos impacta no nosso caráter, e portanto todas as nossas ações são passíveis de juízo ético. Mesmo sozinhos em casa, ou durante nosso tempo livre, podemos agir bem ou mal. Cada ação nos aproxima ou nos afasta da felicidade que desejamos – a ética começa quando percebemos isso e resolvemos fazer algo a respeito.

A Ética Racional

“É tão natural buscar a virtude e evitar o vício quanto buscar a saúde e evitar a doença.” (Lowes Dickinson)


No artigo A Inconsistência do Relativismo Ético, tentei resumir os principais argumentos de Henry B. Veatch sobre as contradições da postura relativista no que diz respeito à noção de certo ou errado. Mesmo os relativistas, no fundo, precisam acreditar na possibilidade de escolha ética, até porque o próprio relativismo seria uma escolha desse tipo. O foco foi apenas expor a inconsistência do relativismo, e afirmei que em outro artigo tentaria resumir seus pontos sobre como deveria ser então uma ética objetiva. O autor de O Homem Racional parte de uma linha aristotélica para mostrar que é possível escolher uma ética a partir da razão humana, e a seguir veremos seus principais argumentos.

Seguindo o dictum aristotélico, Veatch acredita que o ponto de partida para definirmos o bem de qualquer coisa é “simplesmente aquilo em cuja direção ela é naturalmente organizada em seu desenvolvimento”. Devemos descobrir, através de nossa experiência humana comum, quais as capacidades e potencialidades das coisas, quais “os fins ou objetivos rumo aos quais elas são naturalmente orientadas em seu crescimento e desenvolvimento natural”. No caso dos homens, dotados de inteligência, pode-se presumir que seus fins apropriados diferem bastante daqueles das plantas ou animais. Os homens contam com o propósito racional para atingir suas metas. Logo, apenas sobreviver e cumprir as funções vegetativas não basta para os homens. A perfeição natural do homem “envolve o exercício daqueles poderes e capacidades que são distintamente humanos, isto é, a inteligência e o entendimento racional”.

Isso parece bastante evidente mesmo para aqueles que tentam negar este fato. Se alguém tivesse que escolher entre um animal satisfeito ou um ser humano com angústias, dificilmente escolheria realmente viver como o animal. O que se perderia é a capacidade de entendimento das coisas, mesmo que limitada. Era isso que John Stuart Mill tinha em mente quando escreveu: “É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um suíno satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito”. Em casos extremos de necessidade e desespero, é verdade que propostas como essa foram aceitas, como no nazismo ou comunismo, onde os seres humanos praticamente abdicaram de suas capacidades racionais para delegar responsabilidade e confiar seu futuro aos outros. Mas, de um modo geral, “homem nenhum em seus sentidos preferiria a existência de uma vaca contente, por mais bem-alimentada e bem-tratada que seja, à existência de um ser humano com pelo menos algum entendimento do que está acontecendo”. Mesmo nesses casos extremos, vale lembrar que era preciso tentar fazer as vítimas acreditarem que estavam na luz, enquanto viviam na escuridão, controladas de fora. Isso confirma o julgamento de Aristóteles sobre o valor supremo para o homem de ser esclarecido, de saber o que se passa, de ter uma vida inteligente e examinada. Muitos podem se enganar, mas não costumam abrir mão da crença de que entendem parcialmente os acontecimentos.

Mas apenas a inteligência não basta. Poucos poderiam negar que Stalin ou Hitler foram homens inteligentes, no sentido de colocar os meios adequados em prática, de acordo com seus vários fins. No entanto, quem ousaria dizer que levaram vidas inteligentes, no sentido socrático de busca do autoconhecimento? Eles adotaram meios para atingir seus fins, como poder, ganância, vingança, mas não para a meta de “conhecer a si mesmo”. Se a inteligência é usada como instrumento para outros fins, e não para a própria inteligência, isso não pode ser descrito como algo sensato. Como Veatch explica, “a questão é que meios não são fins, e confundir aqueles com esses é apenas tolice e estupidez”. A própria riqueza é um bom exemplo dessa tolice, já que, usada como um meio pode possibilitar mais conforto para seu dono, mas, encarada como o próprio fim em si, nunca é um objetivo inteligente. Quem diria que o Tio Patinhas era feliz e levava uma vida inteligente e examinada?

Pensemos nos casos de honra e reputação, o reconhecimento alheio, em suma. Alguém realmente acha que é inteligente buscar reconhecimento por si próprio? Não parece fazer sentido. O reconhecimento não é um fim, mas uma marca ou sinal do fim. O fim é nosso próprio valor, nossa dignidade, através da realização de alguma coisa importante. Com certeza é algo tolo buscar um reconhecimento por alguma coisa imerecida, falsa. Pessoas que trocam a dignidade e o valor próprio pelos aplausos de terceiros não podem levar uma vida inteligente e examinada. Seria uma vida totalmente falsa, de aparências. A vida inteligente é aquela onde o indivíduo não usa seu conhecimento e inteligência como meros meios para a realização de fins irracionais, “mas antes para prescrever e determinar os próprios fins”. Não basta ter um QI elevado ou ter erudição; viver inteligentemente requer o conhecimento que é relevante para a sua vida como ser humano.

“A vida boa ou a vida inteligente”, resume Veatch, “acaba por ser nada além da vida feliz”. Mas uma vida genuinamente feliz, diferente do falso contente. Afinal, estar contente ou feliz envolve estar contente por alguma coisa. A pergunta passa a ser: em que tipo de coisa um dado indivíduo encontra satisfação? A resposta para essa pergunta é o que faz toda a diferença. A arte de viver, chamada ética, ensina o homem como viver de um modo caracteristicamente humano, i.e., “sábia e inteligentemente, não sendo guiado por caprichos ou paixão, não por mera convenção social ou autoridade externa, mas pela luz da própria verdade como esta ilumina seu entendimento e assim serve como um farol para iluminar o caminho em cada decisão sua”.

As diferentes paixões podem dominar as escolhas de um indivíduo e afastá-lo de uma vida inteligente. A inquietação de espírito, amargura e ressentimento, imprudência e inveja, todos esses sentimentos indicam impulsos passageiros que levam um homem a fazer coisas que ele mesmo reconhece terem sido estúpidas e insensatas. Viver inteligentemente, portanto, envolve “ver as coisas como elas são e ver a si mesmo como se é, em meio a todas as confusões e deturpações devidas as suas próprias paixões, predileções e preconceitos”. Isso não quer dizer, de forma alguma, que ter emoções é incompatível com viver de forma inteligente. Sem emoções o homem seria apenas um pedaço de carne. O importante é que o homem fique satisfeito ou incomodado, chateado ou atemorizado, desanimado ou empolgado, contanto que o objeto de seu sentimento ou emoção seja autêntico, que faça sentido despertar tais reações.

O enorme sofrimento oriundo da perda de um ente querido é compreensível e totalmente compatível com uma vida examinada. O mesmo já não ocorre quando o sucesso do vizinho desperta um sentimento incontrolável de revolta ou inveja, ou quando alguma superstição irracional desperta um medo exagerado. Os homens devem ter a indispensável habilidade para lidar de forma adequada com seus sentimentos. Veatch resume: “O homem virtuoso é aquele que sabe como utilizar e controlar suas próprias emoções e desejos”. A inteligência e o raciocínio humanos terão como função “fornecer um necessário corretivo dos juízos muitas vezes equivocados implícitos em tantas de nossas emoções”. E é importante destacar que não basta meramente saber o que se precisa fazer como ser humano; além disso, há que fazê-lo. Em outras palavras, conhecer as virtudes não é suficiente; devemos praticá-las. Nós somos aquilo que repetidamente fazemos. A excelência, portanto, não é um ato, mas um hábito. A sabedoria é o conhecimento do que fazer; a habilidade é saber como fazer; e a virtude é fazer.

A questão que surge é: como definir essas virtudes, se a humanidade possui uma variedade incrível de condições, costumes, hábitos e circunstâncias? Eis como Veatch rebate este dilema: “É verdade que, como as condições de vida variam de uma época para outra, de região para região, ou de uma cultura para outra, os critérios de valentia, digamos, ou de honestidade, ou de estupidez hão de variar consideravelmente. Mas a distinção entre valentia e covardia, honestidade e desonestidade, sabedoria e insensatez será não obstante reconhecida e mantida quase universalmente”. As exigências da excelência humana são discerníveis na vida humana onde quer que ela possa ser encontrada. A evidência apresentada por Veatch está na seguinte pergunta: De outro modo, como poderíamos ler história e literatura não meramente com apreciação estética, mas com uma apreciação de sua relevância para nossas vidas? Os romances de diferentes épocas, culturas e povos despertam um julgamento praticamente universal no que tange às virtudes e vícios. Podemos identificar e separar o joio do trigo, o corajoso do covarde, o íntegro do pérfido, o sábio do tolo. E se podemos fazer isso, então devemos reconhecer que os “fracassos humanos devem-se não ao fato de que não sabemos o que devíamos fazer, mas antes ao fato de que não escolhemos agir sobre nosso conhecimento”.

Afirmar o contrário, alegando que a virtude é uma questão de conhecimento e o vício, de ignorância, significa matar o livre-arbítrio, tornar todos os homens inimputáveis, ninguém sendo considerado responsável por ser como é. É evidente que ninguém pretende negar as diferentes circunstâncias envolvidas nas escolhas. Para determinada pessoa, dependendo do ambiente em que cresceu, pode ser infinitamente mais difícil fazer as escolhas certas. Mas, em última instância, sempre caberá ao indivíduo fazer essas escolhas, mudar o rumo das coisas, escolher o caminho da virtude. Somos responsáveis pelas nossas escolhas na vida. “Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”, disse Viktor Frankl, mesmo sendo torturado por nazistas. Quem nega esta responsabilidade individual, optando por algum tipo de determinismo, não consegue evitar uma gritante incoerência: ele mesmo não poderia ter concluído racionalmente nada sobre o determinismo, nem teria mérito algum em escolher esta teoria como válida, já que ela seria completamente determinada fora de seu alcance ou compreensão. O determinista precisa reconhecer que ele próprio não passa de uma marionete reagindo irracionalmente aos estímulos vindos de fora. Uma postura no mínimo absurda.

Assim, Veatch diz: “A questão relevante é sempre, primeiro, se as circunstâncias foram de molde a deixar alguma escolha e, segundo, se, admitindo-se que ele tinha de fato uma certa escolha, ele fez a escolha que se esperaria de um homem razoável, ou um homem moralmente bom, fizesse nessas circunstâncias”. Claro que não devemos ter a pretensão da certeza absoluta sobre essas escolhas, pois a onisciência não faz parte da natureza humana. Somos seres falíveis, e nossa própria razão descobre esse dado de nossa natureza. No entanto, “a ética do homem racional envolve como seu imperativo básico a simples injunção de ser racional, de viver inteligentemente, de exercer as virtudes intelectuais e morais”. Muitos olham para seres humanos afastados da sociedade para buscar uma suposta natureza humana. Mas por que o “homem natural” deveria ser o menino-lobo, ou o garoto selvagem que nunca teve contato com a sociedade civilizada? Por que ignorar que a própria civilização é fruto da natureza humana? Ignorar isso seria excluir qualquer coisa que “os seres humanos possam ter vindo a ser como resultado do exercício de sua inteligência e em virtude de seus próprios planos, propósitos e desígnios”.

O assunto é complexo demais para ser esgotado em um artigo apenas. Provavelmente os argumentos expostos suscitam muitas dúvidas não respondidas. O mais importante, em minha opinião, é deixar claro que o relativismo ético, no sentido de ser impossível definir o certo e o errado, é uma postura filosófica insustentável, e normalmente utilizada por aqueles que desejam defender o errado ou se eximir de responsabilidades. Alguém diria que não é possível saber quem, entre um Sócrates e um Hitler, levou uma vida mais ética? O ser humano é um animal racional, e essa razão deve ser usada para descobrir sua própria natureza e, por conseguinte, o que seria uma vida inteligente como ser racional. Espero ao menos ter conseguido mostrar que isso é possível, com base nos argumentos aristotélicos abordados por Veatch. O homem não deve viver guiado por paixões irracionais, movido por impulsos momentâneos sem uma devida reflexão. A vida humana, aquela que vale a pena ser vivida, é a vida examinada, a vida inteligente. Os homens têm capacidade para tanto. Mas, antes, é preciso escolher ser homem!