Ética e Liberdade: seria Rothbard inimigo da liberdade?
Em seu artigo
Os inimigos da liberdade, Cláudio Tellez levantou um
a questão muito pertinente no tocante à relação entre ética e liberdade. Essa relação permeia importante argumento que intelectuais conservadores levantam contra a ética libertária de
Murray Rothbard. No fim, chegam concluir que o libertarianismo de Rothbard é um importante aliado de ideologias coletivistas, tal como o socialismo. Apesar da admiração que tenho pelo trabalho do Cláudio Tellez, julgo que esta posição assumida por ele e tantos outros conservadores, não passa de uma má interpretação da obra de Rothbard, especialmente em relação a sua ética. Mas vamos abordar o argumento central de Tellez e verificar se sua crítica ao libertarianismo de Rothbard tem procedência.
Tellez afima:
“O humanismo cristão e a filosofia do Direito Natural, de Santo Tomás de
Aquino, constituem, portanto, o núcleo duro de uma fundamentação ética da
liberdade. Entretanto, nos últimos séculos e com mais intensidade a partir do
final do século XIX, a civilização ocidental passou a afastar-se gradualmente
dos valores cristãos, permitindo com isso o fortalecimento das ideologias de
caráter coletivizante. O Socialismo é um exemplo dessas ideologias. O
Libertarianismo extremado, que ideologiza o pensamento liberal através de um
"vale-tudo axiológico" conduz ao mesmo fim dos socialistas, pois nega a
transcendência necessária para limitar a pretensão racionalista tanto à
realidade quanto à moralidade. É nesse sentido que os adeptos das seitas
randiana e rothbardiana são os melhores amigos dos socialistas e, ao mesmo
tempo, os maiores inimigos da liberdade.”
Esse parágrafo é repleto de erros que não é fácil saber por onde começar analisar. Proponho aqui ir por partes sem contudo exaurir a questão.
IPrimeiramente, não há nada errado em acreditar que o humanismo cristão e a filosofia do Direito Natural de Santo Tomás de Aquino constituem o núcleo duro de uma fundamentação ética da liberdade. Mas, curiosamente, a própria ética da liberdade de Rothbard tem como base essencial precisamente a concepção de lei natural de Santo Tomás de Aquino(1). Ou seja, a noção de que o libertarianismo de Rothbard esteja em desacordo com os princípios éticos tomistas é absolutamente despropositada, vez que a sua própria ética deriva de pressupostos tomistas.
Quando Tellez afirma que a ascensão das doutrinas coletivistas desde fins do século XIX rejeitam a revelação cristã e que, no mesmo sentido, o libertarianismo do Rothbard se enquadra no mesmo grau de perigo que o totalitarismo socialista, parece que o autor não conhece nem o essencial do pensamento de Rothbard.
É preciso saber que quando o economista e filósofo libertário escreveu seu livro sobre a ética da liberdade, ele não propôs uma ética pessoal, uma moral individual, mas tão somente uma filosofia política tendo como foco - do princípio ao fim - a ordem social geral. Isso quer dizer que a ética rothbardiana, ou simplesmente sua filosofia política, em nenhum momento adentra na esfera da ética cristã ou de qualquer outra doutrina de moral individual. Esse é um ponto decisivo na teoria de Rothbard, mas alguns de seus críticos ignoram em absoluto essa característica central da sua ética, como faz Tellez, e sou levado a crer que fazem isso por puro desconhecimento dos seus escritos.
Todo o pensamento de Rothbard é permeado pela defesa da liberdade humana e, como teórico social que foi, estudou a natureza e as conseqüências da agressão à propriedade e à vida humana. Assim, Rothbard mostrou (não ineditamente) que liberdade e agressão estão em franca oposição. Esse é o ponto demonstrado por Rothbard que personifica toda a sua filosofia política ao discutir a natureza e o papel do Estado em sociedade. Então, Rothbard mostra que o estado é uma entidade que faz uso sistemático da força e da agressão, portanto, vai contra a lei natural do direito elementar à liberdade e propriedade e sua atuação em sociedade gera resultados que não seriam esperados como a injustiça, o desperdício dos escassos recursos econômicos, a pobreza e a guerra. A história moderna vem demonstrar à exaustão as conseqüências da atuação estatal, seja ele um estado totalitário de corte socialista ou um estado mínimo (que, aliás, jamais se manteve mínimo) do tipo liberal ou keynesiano.
Assim sendo, a proposição de que, junto com o socialismo, o libertarianismo de Rothbard “nega a transcendência necessária para limitar a pretensão racionalista tanto à realidade quanto à moralidade”, se apresenta desprovida de sentido. O sistema de Rothbard apenas demonstra, antes de qualquer coisa, a injustiça em si que é a existência de uma entidade social como o Estado, caracterizado por deter o monopólio econômico na oferta de determinados serviços (proibir a entrada de novos concorrentes) e obter a sua renda através da coerção econômica (os impostos), tal qual um “bando de ladrões”, como definiu Santo Agostinho.
É em oposição a esse modelo de ordem social que Rothbard propõe o libertarianismo - ou anarco-capitalismo - como única alternativa restante em defesa da liberdade. Esse sistema garantiria uma ordem social mais justa, próspera e pacífica em relação à ordem estatal. Ademais, nada personifica melhor a pretensão racionalista e idealista em relação à realidade e à moralidade que a tentativa de instituir a ordem social e econômica (quiçá uma ordem moral como de fato faz) por meio de um ente monopolista que vive da agressão sistemática à liberdade e aos direitos elementares dos seres humanos.
O Estado quando institui uma lei, essa passa a reger toda a ordem social e também a conduta individual, independente da sua aceitação por parte dos indivíduos que compõe a sociedade. Quando o Estado aumenta os impostos a níveis insuportáveis, institui leis que criminalizam a manifestação religiosa ou de idéias e estabelece coercitivamente “direito às minorias”, mesmo que às custas de alguns direitos inalienáveis do homem, não parece haver nenhuma imoralidade e tampouco alguma agressão à liberdade individual, aparentemente tão cara aos conservadores-liberais como Tellez. De fato, por trás desse princípio ético reside a noção de que “o furto é imoral, mas só um pouquinho é necessário e saudável”. É exatamente sob esta ética que se sustenta a ordem democrática e estatal, e é contra ela que se dirige toda a crítica da ética rothbardiana.
II
É comum entre os conservadores-liberais criticar o libertarianismo de Rothbard de “ingenuidade idealista”, como fez o próprio Tellez, porque ele rejeita o Estado e postula uma sociedade fundada totalmente no princípio de propriedade privada, onde os serviços de proteção, justiça e ordem são fornecidos através de agências e empresas privadas em regime de concorrência. Não raro afirmam que Rothbard rejeita a existência do Estado porque ele é “otimista” em relação à conduta humana.
Ora, quem justificou o Estado com base puramente no pessimismo em relação aos homens foi Hobbes. Mas, de fato, essa questão de ser “otimista ou pessimista" em relação ao homem é absolutamente irrelevante e não justifica qualquer argumento, seja em prol ou contra o Estado. Rothbard, por exemlplo, não defende o libertarianismo porque é "otimista" em relação à conduta humana. Ele defende esse sistema porque é o que mais condiz com a natureza humana e, consequentemente, melhor permitirá a sociedade viver em justiça, prosperidade, paz e liberdade. Não trata-se também, a meu ver, de delírio ideológico, mas o que ele fez foi um trabalho de analisar a natureza humana e sua vida em sociedade. Com os elementos da teoria econômica, concluiu que o livre mercado é melhor para todos e, portanto, ele rejeita a atuação do estado na economia. Mas isso não basta. Rothbard mostrou que o Estado mesmo considerado em uma atuação "mínima", como supôs Hobbes, é perverso para o ordenamento social que se quer livre, justo e pacífico. A propriedade privada antecede a ordem estatal. Os serviços que o Estado presta para proteger e garantir a propriedade privada e as relações voluntárias podem ser ofertados de modo mais eficaz (não só do ponto de vista econômico, mas da justiça) pela iniciativa privada. É esse o ponto fulminante da teoria de Rothbard fartamente esboçado em seus livros
Man, Economy and State (1962),
Power and Market (1970) e
The Ethics of Liberty (1982). Enquanto os primeiros mostram a superioridade econômica da sociedade libertária, o terceiro revela a superioridade ética, do ponto de vista da justiça.
III
Outra tônica comum nos ataques dos conservadores-liberais-cristãos ao libertarianismo de Rothbard, é que eles parecem confundir a moral cristã com a ordem estatal, pois ao rejeitar Rothbard com base na moral cristã eles estão assumindo, mesmo que não se dêem conta, que a ordem estatal é a verdadeira garantidora da liberdade, porque ela, em ultima instância, deriva da ética cristã. Foi exatamente isso que fez Tellez em seu artigo e por essa razão sou induzido a crer que ele não leu o pensador libertário.
Em definitivo, o que Rothbard faz é mostrar que a ordem estatal é inim
iga da liberdade. Isso não tem nada a ver a moral cristã. A propósito, a ética da liberdade de Rothbard é derivada exatamente da lei natural de Santo Tomas de Aquino e sua conclusão libertária não está em oposição aos valores do cristianismo por uma simples questão de que sua ética diz respeito a filosofia política para a ordem social geral. E isso não se relaciona com a moral cristã que é de foro privado e, deixe-se claro, sobre isso Rothbard não faz nenhum juízo. A esse respeito, seu sistema apenas tem a intenção de fornecer os melhor meios para que a manifestação da religiosidade cristã e de outra religião ou filosofia de vida qualquer, seja assegurada e não seja agredida por terceiros. Enfim, é lamentável que tantos conservadores-liberais-cristãos distorçam tão loucamente o debate ricamente levantado por Rothbard. A relação de inimizade entre a ética de Rothbard e a ética cristã é inexistente. E a idéia de que o seu libertarianismo é inimigo da liberdade é ainda mais alucinante e só pode ser feita com base num idealismo representativo que o próprio Tellez pretende criticar como sendo a base ingênua das idéias de Rothbard.
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1. Ver Rothbard, Murray N.
The Ethics of Liberty, parte I –
capítulo 1.