29 de ago. de 2005

Lições Econômicas do Cotidiano

Inocêncio é um típico sujeito boa praça. Acredita piamente que a humanidade é composta de gente empenhada em fazer o bem; gente caridosa e solidária, como ele. Sempre procura olhar o lado bom das coisas, sonha com o fim das desigualdades e que um dia haverá "justiça social", mesmo que não saiba exatamente o significado disso. Desde cedo "ensinaram-lhe" a acreditar nos homens, por isso confia nos políticos que vendem ilusões e frases de efeito do tipo "um mundo melhor é possível". Adora o presidente Lula. Não gosta de bandidos, nem de corruptos, mas pensa que eles são vítimas do dinheiro, do “vil metal que a tudo e todos corrompe”.
Para comemorar o seu aniversário, Inocêncio convidou alguns amigos mais chegados para uma feijoada em casa. No dia marcado, bem cedinho, nosso personagem partiu resoluto em direção ao supermercado, levando consigo a sua fiel companheira, dona Lógica, e uma enorme lista de produtos.
Era um domingo e a loja não estava muito cheia. Começaram pelo principal: o feijão. Havia dezenas de tipos e marcas à sua disposição, mas Inocêncio escolheu aquele que sempre comprava, cuja qualidade era já sua conhecida. Arroz, farinha de mandioca, algumas folhas de couve, laranja, limão, açúcar e cachaça para a caipirinha. Carne seca, lombo salgado, costelinha, paio, lingüiça de várias qualidades, torresmo, pimenta e temperos diversos. Não esqueceram da cerveja, muita cerveja.
Enquanto percorriam os corredores do amplo supermercado, Inocêncio exprimia toda a satisfação de alguém que se sente um privilegiado:
"Que boas almas têm os donos e responsáveis por esse estabelecimento. Colocam à nossa disposição, com o maior capricho, milhares de produtos de boa qualidade, expostos num ambiente limpo, agradável e bonito. Além disso, não se incomodam de abrir num domingo! Puxa vida, alguém passou a noite acordado para que eu chegasse aqui pela manhã e encontrasse tudo isso à minha espera. Algumas almas caridosas plantaram, regaram e colheram esse feijão, esse arroz e essa mandioca porque sabiam que eu (ou alguém) iria precisar deles hoje. Outras tantas transportaram, embalaram e arrumaram tudo nas prateleiras. Os preços estão ótimos. Veja quantas promoções. Quanta solidariedade!"
"Espera um instante, Inocêncio" - bradou dona Lógica, com a frieza de sempre - "ninguém sabia que iríamos precisar disso tudo justo hoje, nem mesmo que viríamos aqui num domingo. Tem alguma coisa errada com esse teu pensamento. Essa gente toda não fez tudo isso pelos teus belos olhos."
"Pense comigo, meu bom homem: toda essa gente não quer deixar-te satisfeito porque gosta de ti. Eles nem mesmo te conhecem. Muitos deles, caso te conhecessem de perto, provavelmente não iriam muito com a tua cara. Achar-te-iam um chato. E, mesmo assim, eles desejam que tu estejas satisfeito. Não será porque eles lucram com a tua satisfação? Não será porque eles ganham alguma coisa cada vez que retornas a esse estabelecimento? Não será porque eles fazem tudo isso pensando em si mesmos e não em mim, em ti ou nos outros clientes dessa loja? Tu achas, realmente, que os donos desse imenso supermercado estão preocupados contigo?"
"Meu querido Inocêncio, não se iluda: toda esta comodidade é colocada à tua disposição por pessoas cujo único e exclusivo objetivo é o benefício próprio. Eles não estão nem ai para ti, mas mesmo assim farão de tudo para satisfazê-lo, para agradá-lo, para que você deseje voltar outras vezes, para que não os troque pelo concorrente mais próximo. Afinal, eles precisam do teu dinheiro. A tua satisfação é o lucro deles. Nenhuma das pessoas que, de alguma maneira, contribuíram para que você tivesse tantos produtos à tua disposição, na hora que melhor lhe conviesse, fez isso com intenções altruístas, mas, ao contrário, agiram de forma egoísta, pensando apenas nos seus próprios ganhos. E, tu queres saber do que mais: eu não vejo nada demais nisso. Pelo contrário, espero que todos eles permaneçam zelando pelos seus interesses individuais, pois somente dessa maneira nós continuaremos tendo à nossa disposição todas estas facilidades."
“És mesmo incorrigível, Lógica. Quando será que tu irás convencer-te de que esse mundo é feito de gente boa, que pensa primeiro nos seus semelhantes e só depois em si próprias?”
Foram para casa, prepararam a feijoada e passaram um domingo fabuloso. Comeram, beberam e divertiram-se a valer com os amigos e familiares. A festa só terminou depois das dez da noite, quando Inocêncio foi dormir feliz da vida.
Na segunda feira, logo cedo, o patrão de Inocêncio pediu-lhe que fosse até a sede da Companhia Estadual de Águas para retirar uma segunda via da fatura mensal, que não havia chegado até então e o vencimento estava próximo. "Sabe-se lá o que esses malucos podem fazer por causa de um dia de atraso..." comentara o precavido homem.
Chegando à sede da empresa de águas, Inocêncio deparou-se, logo na entrada, com diversas pessoas que pareciam aguardar alguma coisa. Olhou por trás do balcão de recepção e viu ali uma senhora sentada numa escrivaninha velha, saboreando o que parecia ser uma boa revista. Delicadamente, como era o seu costume, dirigiu-se à criatura:
"Por favor, poderia informar onde posso retirar uma segunda via..." - mas foi bruscamente interrompido pela voz ríspida e autoritária da recepcionista:
"O senhor provavelmente ainda não foi informado de que o expediente aqui começa às onze horas. Portanto, não atendemos às nove, nem às dez e nem aos cinco para as onze. Queira, por gentileza, aguardar o horário correto."
Inocêncio olhou para o relógio e viu que faltavam exatos cinco minutos para às onze horas. Aguardou, no fim da fila, a sua vez de solicitar uma informação. "Coitada - pensou ele - deve ter tido um mau domingo, ou quem sabe alguma enxaqueca."
Já devidamente informado pela intratável mulher, subiu até o local indicado, no segundo pavimento do velho prédio. Lá, havia um sujeito lendo tranqüilamente o jornal do dia, ignorando, solenemente, a presença de quem quer que fosse. Nosso personagem pigarreou, tossiu e, finalmente, falou ao funcionário:
"Por favor, senhor, eu gostaria de solicitar uma segunda via de fatura. O vencimento está próximo, mas até o momento ela não foi entregue pelos correios."
Após alguns minutos, o suficiente para terminar a sua leitura, o servidor levantou-se, preguiçosamente, para fazer aquilo para quê lhe pagavam, e, depois de um longo suspiro, perguntou:
"Trouxe a cópia da última fatura paga?"
"Não - respondeu Inocêncio - mas aqui está o original."
"Lamento, cavalheiro, mas será necessária uma cópia."
Inocêncio já havia divisado uma máquina copiadora no fundo daquela sala e perguntou se não poderia utilizá-la, a fim de poupar tempo. Pagaria pelo serviço, caso fosse necessário.
"Lamento - anunciou o homem - aquele equipamento é somente para uso interno, mas há uma papelaria a dois quarteirões daqui, onde o senhor poderá fazer a cópia, caso queira."
Meia hora depois, lá estava o nosso valente personagem de volta com a xérox da conta. "Prontinho, aqui está" - disse triunfante.
O funcionário pegou o papel e entregou um formulário para que Inocêncio preenchesse. Feito isso, passou-lhe uma guia de recolhimento, no valor de quatro reais (o preço da segunda via).
Inocêncio não entendeu muito bem aquela situação, pois pensava estar fazendo um favor à companhia e, ainda assim, cobravam-lhe um preço. Enfim, isso não era problema dele. Estava ali para cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Resignado, perguntou: "onde fica o caixa?"
"Só pode ser pago no Banco do Estado. Há uma agência a uns quinze minutos daqui."
Já um tanto contrariado, Inocêncio ousou argüir por que motivo ele não lhe havia fornecido a guia quando saiu da primeira vez. "Ter-lhe-ia poupado tempo e sola de sapato".
"Lamento, cavalheiro, mas devo seguir o regulamento e ele diz que primeiro preciso da cópia, para depois providenciar a guia."
E lá se foi o nosso herói para o banco. Passadas duas horas e uma fila que parecia não ter fim, Inocêncio retornava à "repartição" para apanhar a maldita segunda via, o que, entretanto, só foi possível depois de aguardar mais meia hora, pois o tal fulano havia saído para o almoço.
Chegando de volta ao escritório, nosso amigo foi ainda asperamente repreendido pelo chefe, afinal "a retirada de uma simples segunda via não pode levar um dia inteiro".
À noite, já em casa, Inocêncio pediu auxílio à dona Lógica para escrever uma carta à Diretoria da Cia. de Águas, reclamando do atendimento recebido naquele dia. "Era o mínimo que um cidadão, ciente dos seus direitos, deveria fazer", pensou.
"Ajudo-te com prazer, Inocêncio. Mas tu achas mesmo que isso vai adiantar alguma coisa? Presta atenção: essa gente só age dessa forma porque está com a faca e o queijo na mão. Não há outra empresa que nos forneça água, e como não podemos prescindir dela, temos que aceitar tudo de boca fechada. Ninguém quer ficar sem água. Por que é que tu achas que pagamos um preço tão alto por um serviço tão ruim? Simplesmente não temos alternativa. Ou nos sujeitamos ou não tomamos banho, não cozinhamos. Entendes? Além do mais, os funcionários que te atenderam (se é que aquilo pode ser chamado de atendimento) estão protegidos pela tal da estabilidade no emprego, e, mesmo que os seus superiores quisessem, o que eu não acredito, não poderiam livrar-se deles, a menos que fosse por um motivo muito grave. O pior de tudo é que aquela porcaria de empresa só faz operar no vermelho e pleitear aumento de tarifa. É tudo muito conveniente. Os consumidores que se danem.”
Depois de uma breve pausa, para que Inocêncio pudesse digerir suas palavras, dona Lógica prosseguiu “Então, tu ainda achas que devemos perder o nosso tempo com isso?”
Sem ter como refutar os argumentos de dona Lógica, Inocêncio desistiu da carta e foi deitar-se com a sensação de que havia alguma coisa “errada” com o mundo e com as pessoas em geral. Algo que ele não conseguia compreender.
O autor é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
Publicado no MSM

4 comentários:

Anisio Feitosa disse...

Parabéns! Excelente texto.
E ainda existem pessoas, e não são poucas, que acham que a esquerda no Brasil, será a solução de todos sos males, incluindo os serviços prestados pelo Estado.

Anônimo disse...

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