Para quem é devoto da leitura, as dicas do Cláudio Tellez são valiosíssimas.
Como Leio um Livro?
Durante o curso de Projeto Monográfico, trabalhamos vários métodos para lidar com textos científicos. As referências bibliográficas básicas que temos utilizado até agora são:
ADLER, Mortimer J.; VAN DOREN, Charles. How to Read a Book: the classical guide to intelligent reading. New York: Simon & Schuster, 1972.
FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques. Metodologia Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2002.
Todas as dicas contidas nessas referências são valiosas e importantes para quem está decidido a transformar a leitura em uma atividade inteligente e enriquecedora. Contudo, tenho meu próprio método para ler, o qual venho utilizando há algum tempo e que acabo de incrementar, aproveitando diversos elementos das obras acima e com várias dicas que devo à generosidade do Olavo de Carvalho. Segue, para quem quiser, o meu (não tão breve) guia para ler livros, artigos e outros textos.
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De acordo com Ortega y Gasset, no esforço de entender plenamente um texto, terminamos por entender coisas que o autor não pretendeu dizer e, ao mesmo tempo, nos defrontamos com o princípio de que todo dizer é deficiente, isto é, diz menos do que pretende. De acordo com o filósofo, para ler há que sair do texto, abandonar a passividade e construir a realidade mental que não está explícita no texto, mas que é imprescindível para um entendimento satisfatório. Nas palavras de Ortega y Gasset:
“(...) para entender lo que alguien quiso decir nos hace falta saber mucho más [que él] de lo que quiso decir y saber de su autor mucho más de lo que él mismo sabía.”
Não basta passar os olhos pelas palavras impressas. Há que estabelecer uma relação intensa com o texto e com o contexto, que para Ortega y Gasset é “un todo dinámico en que cada parte ejerce influjo, modifica las demás, y viceversa, recibe presiones de las demás (...) el contexto es, con efecto, un contorno”.
Para ler um livro ativamente, é necessário fazer anotações em folhas separadas e no próprio livro (crianças, não façam isso com livros da biblioteca!). Eu costumo emprestar livros da biblioteca para selecionar as obras que pretendo comprar. Meus livros são totalmente sublinhados, marcados e anotados, sempre a lápis. Há que estar sempre lendo e escrevendo, para redobrar a atenção e maximizar a fixação.
A concentração, a interpenetração e a continuidade são fundamentais para obter bons resultados. De acordo com A. -D. Sertillanges, "el intelectual es un consagrado (...) es preciso darse plenamente para que la verdad se dé".
O primeiro passo que costumo seguir para me familiarizar com um livro é a “leitura averiguativa”, conforme descrita por Adler e van Doren. Inicialmente, faço uma garimpagem, ou leitura de reconhecimento.
1. Leia o título, o subtítulo, as informações presentes na capa e na contracapa e nas “orelhas”. Leia também os prefácios, as notas preliminares e a introdução. A idéia, aqui, é classificar a obra.
2. Leia o índice, para me familiarizar com a estrutura do livro. Nem sempre o índice corresponde à ordem interna real da obra.
3. Leia o índice onomástico para ter uma idéia dos assuntos tratados ou relacionados. Diante de termos que pareçam centrais, é bom recorrer às passagens do texto que os contêm.
4. Textos promocionais não devem ser desprezados, pois às vezes pontos essenciais estão sintetizados neles.
5. Dê uma boa olhada nas referências bibliográficas. É importante saber de onde o autor tira algumas de suas informações e com que outros autores ele se relaciona.
6. Conhecida a tese do autor, identifique as partes do livro que parecem centrais para essa tese. Busque as conclusões dessas partes e leia-as com atenção.
7. Dê uma boa folheada no livro, lendo trechos aqui e ali, prestando atenção às referências ao assunto principal.
8. Faça uma primeira leitura superficial da obra inteira, sem parar nos trechos mais difíceis, mas sempre procurando manter a concentração.
A leitura averiguativa fornece uma idéia da forma e da estrutura do livro. Ao final dessa etapa, é necessário saber responder:
Qual é o tema do livro?
Como o autor desenvolve esse tema, qual a estrutura da obra?
Quais são as idéias principais do autor?
Quais são as palavras-chaves que o autor utiliza?
Você consegue ter uma visão de conjunto do texto?
Depois dessa leitura averiguativa, passe ao contexto, mas de uma maneira organizada:
1. Identificar as informações bibliográficas completas e a localização física da obra. Por exemplo: GELLNER, Ernest. Condições da Liberdade: a sociedade civil e seus rivais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. 193 p. Localização Fìsica: Biblioteca Pessoal.
2. Procurar informações sobre o autor. De onde ele é, qual a sua formação acadêmica (se teve), quais as suas principais áreas de interesse, quais são as suas outras obras e se versam sobre o mesmo assunto do livro que está sendo trabalhado, qual é a sua área do conhecimento, quais são ou foram suas atividades profissionais, quais são as suas influências, a que escola ou corrente ele se filia ou inaugura, com quem ele polemiza, quais são as suas influências intelectuais subreptícias e qual é o ponto de vista metodológico a partir do qual o autor examina o assunto? Procure descobrir o máximo que puder acerca do autor!
3. O contexto geral da obra deve ser identificado. Quais eram as condições políticas, econômicas, culturais, sociais e eventos históricos relevantes (diacrônicos e sincrônicos) no momento da publicação? Qual é o contexto intelectual diacrônico e sincrônico? Sobre o status quaestionis, em que ponto estão os debates sobre o tópico, qual é a relevância do tema, por que o livro é importante?
4. Qual é a definição geral do livro? É um clássico? Traz alguma novidade?
5. Qual é o assunto do livro (objeto material)? O objeto material é o que está sendo estudado pelo autor, o sujeito da ciência.
6. Qual é o ponto de vista (objeto formal-motivo)? O objeto formal-motivo, ou quo, é a formação da ciência como um hábito do intelecto do sujeito cognoscente e a habilidade de abstração necessária para o estudo científico em questão, para que na mente do estudioso possa formar-se o ente de razão correspondente ao seu contato com a realidade estudada enquanto objeto cognoscível.
7. Qual é o objetivo (objeto formal-terminativo)? O objeto formal-terminativo é o quod, consiste na forma adotada pelo objeto material enquanto coisa existente na realidade.
8. Qual é o gênero do livro e quais são os outros limites que o autor impõe (ângulos, delimitações etc).
9. Esquematize as divisões da obra, enumerando os blocos em que o autor divide a sua argumentação. Há que buscar a estrutura real do livro, que nem sempre está explícita.
Neste ponto, passamos à leitura analítica. Leia atentamente o texto, marcando e fazendo anotações onde for necessário. Preliminarmente, é necessário saber que tipo de livro você está lendo, classificando-o em gênero e tema central. A seguir:
1. Separe o tema da tese;
2. Identifique a problematização do tema e a dificuldade a ser resolvida;
3. Identifique como o autor responde ao problema, explicitando a idéia central, a proposição fundamental, a tese e as idéias secundárias ou subsidiárias;
4. Identifique as articulações do texto para reconstruir o encadeamento lógico, o raciocínio do autor;
Lembre-se sempre de que as dificuldades do texto devem ter solução no próprio texto, e os obstáculos podem ser sempre superados através de mais esforço individual. A leitura ativa envolve a interrogação constante sobre as questões, os objetos de discussão, as articulações, os movimentos, o encadeamento lógico, as hipóteses, o modo de exposição, o diálogo com outros autores, as ênfases e os exemplos.
Agora, você já deve ser capaz de identificar o tema-problema, a idéia central, as idéias secundárias e o raciocínio lógico do autor. Na tese, o autor enuncia o propósito de seu objeto. A problemática envolve o conjunto formado pelo tema, a tese e os objetos de discussão. Permaneça sempre no âmbito do texto. Não basta dizer qual é o tema, você deve mostrar como e por que chegou a essa conclusão. Você também deve ser capaz de identificar e ordenar todos os problemas do autor.
Os passos seguintes completam a leitura analítica:
1. Encontre as palavras-chave e descubra como o autor as emprega. Às vezes o contexto ajuda a identificar o significado das palavras mais importantes. Elabore um vocabulário especial e mantenha-o sempre ao seu alcance.
2. Identifique as sentenças mais importantes e extraia delas as proposições do autor.
3. Identifique os argumentos básicos do livro a partir da conexão entre as sentenças. Nem sempre os argumentos estão expressos claramente, às vezes é necessário construí-los reunindo as sentenças ao longo do texto.
4. Seja capaz de explicar os argumentos em poucas palavras.
5. Identifique quais os problemas que o autor resolveu e quais ele não conseguiu resolver. 6. Dos que ele não resolveu, ele tem consciência disso? Explique as soluções do autor.
Ainda não terminou (pensaram que é fácil?). Agora, vamos ver como se faz o resumo, a síntese e um esboço de crítica.
O Resumo Analítico deve conter os problemas e argumentos principais, e o desenvolvimento sintético dos argumentos. Pode-se fazer citações do autor, destacando frases ou passagens relevantes.
A Síntese deve conter a definição geral, o contexto e o resumo analítico, explicitando se o autor falou do assunto sob o ponto de vista que havia declarado e se atingiu seus objetivos de acordo com a perspectiva previamente definida. Uma boa idéia é escrever a sua síntese (ou um resumo dela) em alguma página em branco do livro.
Na Crítica, avalie a coerência interna e a consistência lógica das argumentações, a validade dos argumentos, a originalidade do tratamento que foi dado ao problema, a profundidade e o impacto da análise do autor sobre o tema, o alcance de suas conclusões, as conseqüências da obra, a objetividade ou tendenciosidade (consciente e assumida ou velada), as contradições, a completude e validade das conclusões, as lacunas que o autor deixa, os pontos onde o autor está desinformado ou mal informado, que problemas ele resolveu e que problemas ele não resolveu (de forma consciente ou não) e que perspectivas a obra abre. Tenha sempre em mente que, na elaboração de sua crítica, todos os seus argumentos devem ser classificados, não há lugar para palpites ou achismos. Ainda segundo A. -D. Sertillanges, "hay que evitar también la precipitación en los juicios".
O procedimento descrito acima pretende ajudar a ler um livro (ou um artigo) de maneira consciente e atenta. Mas de nada adianta sem o exercício disciplinado e sistemático, ou seja, a partir de agora, leia muitos livros, trabalhando sempre com esmero, seriedade e dedicação.
Meus sinceros agradecimentos aos autores citados neste post, em especial a Olavo de Carvalho, que com a sua generosidade continua abrindo muitas e frutíferas perspectivas para pessoas realmente interessadas no aprendizado metódico, honesto e sincero. Diversas dicas contidas neste post são de sua autoria.