6 de dez. de 2005

A Contradição do Liberalismo Clássico, ou: a falácia do estado mínimo

"A law of democratic government is that any group that gains power becomes part of the problem, not the solution".
Lew Rockwell Jr.

A idéia fundamental do liberalismo clássico, segundo um dos seus grandes expoentes, Ludwig von Mises, é o direito de propriedade privada. O livre mercado e a concorrência não são as reais essências do liberalismo, são elementos fundamentais, mas a posteriori ao pré-requisito da propriedade privada dos meios de produção.

O programa do liberalismo, se pudermos condensá-lo em uma única palavra, se resumiria no termo “propriedade privada”, isto é, a propriedade privada dos meios de produção [...] Todas as outras exigências do liberalismo resultam deste requisito fundamental (MISES, Ludwig von. Liberalismo segundo a tradição clássica).


Os teóricos do liberalismo mostram que uma sociedade calcada na propriedade privada dos meios de produção, no livre mercado e na liberdade individual, se apresenta como o meio mais eficaz de reduzir a nossa condição natural de pobreza e alavancar o progresso sustentado no padrão de vida das pessoas.

O teorema é o seguinte: a propriedade privada dos meios de produção e a liberdade econômica estimulam os indivíduos a empregar de maneira mais eficiente os escassos recursos econômicos. Neste sistema, o emprego dos recursos procura atender as necessidades mais urgentes dos consumidores, evitando, assim, o desperdício. É a soberania do consumidor que exerce o papel primordial na condução do emprego dos fatores de produção no sistema de livre mercado.

Este sistema, no entanto, não é infalível. Ele é tão perfeito quanto a imperfeição humana permitir. Mas é, ainda, o melhor meio de ordenamento econômico quando este busca o aumento da produção e do bem estar geral da população. Tanto do ponto de vista teórico quanto empírico, o livre mercado apresenta melhores resultados sociais do que qualquer outro sistema, seja ele o intervencionismo de corte keynesiano ou o socialismo marxista.

No entanto, o liberalismo clássico defende um papel ao Estado. Aqui a discussão que se estabelece é quanto a definição de Estado. Conforme Hans-Hermann Hoppe, o Estado é uma entidade que exerce o monopólio compulsório sobre um dado território. Hoppe chama a atenção de que o Estado é investido de dois poderes que o distinguem das instituições criadas no livre mercado: o poder de tributação e de jurisdição.

Sendo assim, o liberalismo clássico se caracteriza como um sistema relativamente intervencionista, pois a própria existência de uma entidade com poderes coercitivos pressupõe a necessidade de algum grau de intervenção sobre a sociedade. O Estado vive de impostos e impostos exercem restrição na liberdade econômica e individual. Portanto, embora o liberalismo clássico defenda a preponderância do livre mercado, ele reconhece que algum grau de intervenção deve ocorrer, pois o Estado tem de cumprir uma função na sociedade.

O poder de tributação implica, necessariamente, que uma das partes contratantes, no caso o Estado, tem o poder de estabelecer o preço e a qualidade do serviço prestado sem que a outra parte (o contribuinte) possa recusar as condições caso elas não lhe agradem. Se assumirmos que o Estado será o encarregado da segurança nacional, unicamente, como assegura a teoria liberal clássica, é ele quem determinará o preço do serviço, independente da manifestação da outra parte. Desta forma, evidencia-se que não são critérios econômicos de emprego dos escassos recursos que determinam o preço dos produtos (pois o consumidor não exerce poder), mas sim critérios arbitrários ou políticos, o que, em última instância, culminará no desperdício dos recursos econômicos. O mercado não opera na esfera estatal, é a política, com a sua intrínseca irracionalidade que vigora.

Igualmente, o poder de jurisdição, ou de última decisão em caso de conflito entre particulares, cabe ao Estado, exclusivamente. A cobrança por este serviço também será determinada arbitrária e coercitivamente por meio de impostos. Do ponto de vista do consumidor, todo monopólio é um mal, pois a garantia da não entrada de concorrentes no setor provoca uma queda constante na qualidade do serviço prestado e um aumento no preço do serviço. Além dessa perversa lógica de funcionamento do sistema que acaba por lesar os consumidores/contribuintes em prol dos burocratas, tem-se que independente se você usa ou não o serviço de jurisdição prestado pelo Estado, estará pagando por ele.

O sociólogo alemão Franz Oppenheimer em seu livro The State, citado por Rothbard em Anatomy of the State, define dois meios de se adquirir riqueza. Os meios econômicos e os meios políticos.

O primeiro meio se constitui no emprego de fatores de produção (terra, capital, trabalho, tempo) na produção de mercadorias e a subseqüente troca ou venda destes produtos no mercado. Esse procedimento sempre resulta num acréscimo da produção e, consequentemente, numa melhoria no padrão de vida. Outra característica inerente aos meios econômicos de obtenção da riqueza é que as trocas são realizadas de forma livre e voluntária no mercado.

Por outro lado, o outro meio de se adquirir riqueza é através da exploração, da confiscação e do roubo. Como visto acima, o Estado é, por definição, investido destes meios de obter riqueza. O poder por ele exercido de regular, tributar e confiscar a propriedade é o que Oppenheimer caracterizou de meios políticos de obter riqueza. O Estado nada produz e seu funcionamento não sendo submetido ao mercado, só pode adquirir riqueza através da subtração da riqueza alheia. Por meio do Estado, os meios políticos operam em sua plenitude.

O poder que os liberais clássicos atribuem ao Estado, mesmo que mínimo, carrega em si a fatalidade decorrente do poder de monopólio territorial, de tributação e jurisdição. O que do ponto de vista dos consumidores, é sempre um mal.

Uma vez que alguém esteja investido do poder de monopólio territorial, de tributação e jurisdição, não existe segurança alguma de que este alguém não expandirá cada vez mais o seu poder. Historicamente, verifica-se que as democracias modernas é um longo registro da expansão estatal. O Estado tem se apoderado do poder de emissão de moeda, gerando inflação e enormes déficits, comprometendo o bem estar das gerações futuras, além de inúmeras e cada vez mais intensas intervenções sobre os indivíduos nas mais diversas áreas (educação, saúde, segurança, moradia, agricultura, indústria, meio ambiente etc., etc.).

Em última análise, o liberalismo clássico, com sua idéia de um Estado Mínimo, se revela autocontraditório. Este sistema acaba por resultar no melhor caminho para o intervencionismo (no sentido amplo da palavra) e para o socialismo totalitário, onde o Estado exerce o poder absoluto e a propriedade privada desaparece.

Novamente, é a história do século XX que nos revela isto. Mas antes da evidência empírica do processo de expansão estatal, há a teoria pura que prevê este fenômeno. A teoria é dos libertários que negavam qualquer poder a um ente como Estado, com o monopólio territorial e com poder de tributação e jurisdição sobre este território. O Estado se constitui o detentor legal dos meios políticos de obter riqueza. O grande expoente do libertarianismo ou anarcocapitalismo no século XX foi Murray N. Rothbard e atualmente é Hans-Hermann Hoppe. O que ambos propõem como antídoto ao sistema intervencionista é a supremacia da propriedade privada dos meios de produção. É a negação dos meios políticos de adquirir riqueza e a opção pelos meios econômicos, voluntários e contratuais em toda a esfera do sistema.

Diante do exposto, constata-se que o liberalismo clássico ao conceder um papel ao Estado está dando a autorização de sua própria bancarrota em prol da supremacia dos meios políticos de subtração da riqueza. Contudo, este sistema tem um limite imposto pela natural escassez dos recursos. Ele chegará quando não restar mais nada para o Estado subtrair da sociedade já escravizada e esmorecida.
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Referências:
Hoppe, Hans-Hermann. Democracy: The God That Failed. Transaction Publish, 2001.

Hoppe, Hans-Hermann. The Ethics and Economics of Private Property. Disponível em: http://www.mises.org/fullstory.aspx?Id=1646

Kfouri, Miguel Gustavo Lopes. O Erro dos Liberais Clássicos. Disponível em: http://www.oindividuo.com/convidado/kfouri.htm

Mises, Ludwig von. Liberalismo segundo a tradição clássica. José Olympo: Instituto Liberal, 1987.

Rothbard, Murray N. The Anatomy of the State. Disponível em: http://www.mises.org/easaran/chap3.asp

Tostes, Marcello. Liberalismo Clássico: uma crítica. Disponível em: http://oindividuo.com/convidado/tostes10.htm

Tostes, Marcello. Estado, Contrato Social, Segurança e Bens Públicos. Disponível em: http://oindividuo.com/convidado/tostes9.htm

8 comentários:

Anônimo disse...

Li seu artigo com atenção e achei-o interessante. Concordo que o Estado é uma pedra no sapato do liberalismo.
Mas, qual seria a proposta dos libertários para os problemas advindos da ausência do Estado?
Como fazer com que uma pessoa não mate outra para adquirir seus bens? Como fazer com que as pessoas cumpram contratos ? Ou não existem contratos sociais para os libertários?
Uma pessoa ou entidade poderia se armar até os dentes para intimidar outras pessoas ou entidades?

Lucas Mendes disse...

Prezado amigo,

A resposta eu mencionei no artigo: Rothbard e Hans-Hermamm Hoppe. Ler as referencias que deixei ao final do texto é útil para entender estas questões específicas. Especialmente Democracy: The God That Failed do Hoppe.

resumidamente, vamos a elas

"Qual seria a proposta dos libertários para os problemas advindos da ausência do Estado?"

Os problemas advindos da ausencia do Estado seriam resolvidos naturalmente por arranjos voluntários e contratuais entre as partes. A exemplo do problema da produção de alimentos, vestuários etc. etc (não citei estes setor ao acaso, mas sim porque são produtos essencias a nossa sobrevivencia) que são fornecidos exclusivamente pelo setor privado.

"Como fazer com que uma pessoa não mate outra para adquirir seus bens?"

Uma sociedade libertária não é desprovida de códigos morais e de conduta. A sociedade por si só cria e estabelece regras de conduta muito superiores as do Estado. E não há como fazer para impedir o assassinato. Uma ordem libertária não preve o fim da violência, apenas possui os meios mais eficazes de combate-la e de reduzi-la. Indenizações as vítimas de agressoes poderia ser uma pena prevista pelas agencias de segunraça para aqueles que atentassem contra a propriedade e a vida. As agencias ainda seriam livres para estabelecer punições (desde que estas fossem aceitas pelo contratante).


"Como fazer com que as pessoas cumpram contratos?"

As normas de conduta estabelidade pela sociedade estimulariam que as pessoas cumprissem os contratos, visto que se ela não agir assim, naturalmente tenderia a ser negligenciada, excluida pelo mercado, ficando numa situação pior do que se agisse de acordo com as normas estabelecidas. A propriedade privada e o livre mercado garantem esta ordenação social. Mas como disse não se trata de um sistema infalível ou perfeito, porque nem este é o objetivo de uma boa teoria que lida com as limitações humanas.

"Uma pessoa ou entidade poderia se armar até os dentes para intimidar outras pessoas ou entidades?"

Sim, poderia. Mas note que isto é um risco de todo e qualquer sistema de ordem social. Nenhum sistema garante a imunidade contra investidas dessa natureza. O que temos certeza é que muito menos o atual sistema em que vivemos garante esta proteção.


Onildo, para explicações mais detalhadas sobre os contratos, a lei etc. etc. não deixe de ler o livro do Hoppe acima mencionado e mais estes artigos, ambos de Robert Murphy.

http://www.mises.org/story/1855 But Wouldn't Warlords Take Over?

http://www.mises.org/story/1874 The Possibilty of Private Law


Abraço!
Lucas

Anônimo disse...

Caro Lucas. Com uma tributação equivalente a 40% do PIB, não creio que o nosso Estado seja mínimo. Salvo se o for quanto à sensatez. Concordo com o repúdio ao excesso de intervencionismo estatal, mas, entendo, caso "a supremacia da propriedade privada dos meios de produção" ocorresse, retornaríamos ao modelo de "Estado Medieval", com a fragmentação do poder estatal e transmissão da soberania para "feudos" (na realidade, pequenos Estados, talvez muito mais intervencionistas).

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

Alcançar o estado mínimo, deve ser sem dúvida o objetivo atual das sociedades mais avançadas. Nas emergentes (classifico assim, aquelas com número grande de (i)(e)migrantes, que vivem pelos desejos impostos pelo próprio modelo) acredito, cairíamos na bárbarie. Entendo que passos teóricos arrojados, serem desviados pela 'praxis'. Apenas uma observação. O post é excelente. Parabéns pelo Blog.

Anônimo disse...

Você diz: "O Estado nada produz". Bom, partindo desse ponto realmente o Estado cresceria indefinidamente e enguliria a sociedade. Para mim esta é uma premissa equivocada que te leva à conclusões equivocadas. Na realidade um Estado eficiente é um controlador e prestador de serviços, como já ocorre em vários países desenvolvidos, nos quais já existe "a supremacia da propriedade privada dos meios de produção", como voce bem disse.
Na sentença "O Estado tem se apoderado do poder de emissão de moeda, gerando inflação e enormes déficits" você só pode estar falando do Brasil, e aqui o Estado está longe de ser mínimo.
Além disso, mais uma vez voce inora a propriedade auto-reguladora da democracia.

Anônimo disse...

Caro Lucas

Diversos artigos que vc publica em seu blog são de extremo proveito para a Teoria do conhecimento do objeto do Direito (epistemologia jurídica?), desenvolvida na Modernidade por diversas correntes de pensamento jurídico.
Solicito sua permissão para reproduzí-los, com citação da(s) fonte(s) no site que mantenho para meus alunos, sem fins comerciais.
Parabéns pela clareza e objetividade na crítica que desenvolve sobre os obstáculos erigidos pelo Estado, no desenvolvimento das relações sociais.
Obrigado.

Anônimo disse...

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